Maria Lucia Fattorelli
Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida
27/2/2012
Será que os professores do setor público federal, estaduais e municipais que recentemente fizeram longas greves são irresponsáveis? Os médicos e residentes de instituições públicas que paralisaram suas atividades em ato grevista por melhores salários e melhores condições de trabalho são desumanos? Os bombeiros que também fizeram greve são desleais? E agora os policiais grevistas são criminosos? E tantas outras categorias do Judiciário, da Fasubra, Fenasps, os aeroviários, bancários, correios, que também realizaram movimentos grevistas?
O que tem levado todos esses trabalhadores a enfrentar longos períodos de greve?
Para responder a essa questão é necessário analisar a situação remuneratória dos trabalhadores do setor público no Brasil.
Desde o Plano Real, a participação dos “Gastos com Pessoal” na Receita Corrente Líquida da União vem caindo. Se comparado com o PIB, chega-se à mesma conclusão.
Portanto, a riqueza nacional tem crescido, mas a remuneração dos servidores não tem acompanhado esse crescimento. As principais medidas que provocaram essa queda real estão relacionadas com o denominado Plano Real.
Com o intuito de “combater a inflação”, a Medida Provisória que instituiu o Plano Real proibiu a indexação e a atualização monetária automática1, o que atingiu principalmente os salários que ficaram literalmente congelados durante anos.
Nos Estados e Municípios a situação dos servidores tem sido ainda mais grave, pois além da desindexação automática, em 2000 foi editada a “Lei de Responsabilidade Fiscal”2, que estabelece limites para “Gastos com Pessoal”. Tal lei tem sido usada pelo governo como o principal argumento para negar os justos reajustes salariais reivindicados pelas diversas categorias de trabalhadores do setor público.
Além do congelamento dos salários, a tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas – IRPF, que tributa os trabalhadores - também ficou congelada. Dessa forma, pífios reajustes que eventualmente tenham sido obtidos com muita luta por categorias de servidores têm sido em boa parte confiscados. A simples omissão do governo em corrigir a tabela do imposto de renda faz com que o trabalhador passe a pagar mais imposto, ainda que o reajuste obtido não signifique uma modificação em sua condição econômica, e sequer recomponha a inflação do período. Desde 1996, a defasagem da tabela do IRPF já supera a casa dos 50%, ainda que consideradas as atualizações ocorridas no período.
Como se não bastassem os baixos salários e o confisco, os servidores públicos ainda padecem das péssimas condições de trabalho, comprometendo a qualidade do serviço prestado e a qualidade de vida tanto dos usuários, mas principalmente dos servidores que acabam se desdobrando e até colocando recursos pessoais para realizar suas atividades: quantos médicos conhecemos que financiam o exercício de suas atividades no setor público com carga dobrada em outro trabalho? Quantos professores compram com seus próprios salários materiais que deveriam ser fornecidos pelas escolas? Tais atos heroicos, dentre muitos outros, já se tornaram corriqueiros e “mantêm a máquina funcionando”.
Em determinado momento, o salário fica tão defasado e as condições tão aviltantes, que os trabalhadores precisam se organizar para reivindicar seus direitos. As negociações administrativas raramente avançam, pois todas as limitações legais são jogadas na mesa e barram todo e qualquer pleito e reivindicação. Os dados refletem a situação de arrocho em que se encontram os trabalhadores do setor público desde o Plano Real, a exemplo dos gráficos antes demonstrados, relativos ao setor federal. Esgotadas as possibilidades de negociação, não resta outra saída senão a greve – direito consagrado aos trabalhadores.
Autoridades do Partido dos Trabalhadores e demais partidos da base do governo (federal e estaduais) têm criminalizado o movimento grevista ou levado categorias ao esgotamento e quase desmoralização depois de meses de greve sem o atendimento de quaisquer pleitos. Quando o PSDB era governo federal fazia o mesmo, e nos Estados também. Portanto, a política aplicada contra os direitos dos trabalhadores tem sido a mesma desde o Plano Real, não importa o partido.
Enquanto os trabalhadores permanecem na penúria, a situação se modificou para outro setor econômico: os bancos. Esses sim, tiveram lucros crescentes, muito superiores à variação do PIB
A recente CPI da Dívida Pública denunciou que os detentores de quase todos os títulos da dívida pública brasileira estão no setor financeiro.
Esse setor não precisa fazer greve, pois detém inúmeros privilégios “legais” que lhes garante atualização monetária automática generosamente calculada por índice superior à inflação oficial, sobre a qual ainda se multiplicam os altos juros reais, além de benesses tributárias e muitos outros privilégios, garantindo-lhes lucros crescentes, conforme demonstrado no gráfico acima.
Esse conjunto de privilégios que asseguram a destinação da maior parte dos recursos para a dívida denominamos “Sistema da Dívida”. Cabe ressaltar alguns desses privilégios:
Ausência de limites para os gastos com juros na “Lei de Responsabilidade Fiscal”:
A “Lei de Responsabilidade Fiscal” não estabelece limite algum para o custo da insana política monetária em prática no País, que privilegia o pagamento de elevados juros. Pelo contrário, a referida lei determina que o Tesouro Nacional é obrigado a arcar com todo prejuízo do Banco Central. Mais uma vez quem paga a conta somos nós, pois daí vem os contingenciamentos e emissão de mais dívida para pagar juros. Em 2009 o prejuízo do Banco Central chegou a R$ 147 bilhões. Em 2010, cerca de R$ 50 bilhões.
Afronta à Constituição Federal:
Embora a Constituição Federal proíba expressamente a emissão de títulos da dívida para o pagamento de despesas correntes, as investigações técnicas que realizamos na CPI da Dívida Pública provaram que o governo tem emitido novos títulos para o pagamento de grande parte dos juros.
Atualização Monetária automática para a dívida:
A partir do “fim” da atualização automática no país, decretada pelo Plano Real, a dívida pública continuou sendo atualizada automaticamente. Ou seja, a partir de 1995, enquanto os salários dos trabalhadores ficaram congelados, a atualização da dívida pública tem sido feita de forma automática, mensalmente, e por índices calculados por instituição privada (Fundação Getúlio Vargas) que tiveram variação muito superior ao índice oficial de inflação do país (IPCA)3.
Além dessa robusta atualização monetária automática, sobre o montante corrigido mensalmente, incidem as taxas de juros mais elevadas do mundo, o que torna a dívida brasileira a mais cara do planeta.
Os exemplos citados permitem constatar que os direitos dos rentistas estão acima das disposições Constitucionais, acima das restrições da “Lei de Responsabilidade Fiscal” e acima da necessidade de atendimento aos Direitos Humanos no Brasil.
É por isso que vivemos um grande paradoxo em nosso país: ao mesmo tempo em que somos a 6a. potencia mundial, somos um dos países mais injustos do mundo, ocupando a 84a. posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) medido pela ONU.
Essa política de atualização automática para a dívida acrescida de juros exorbitantes e ausência de limites tem provocado o crescimento acelerado da dívida pública brasileira, que já supera os R$ 3 trilhões ou 78% do PIB, e consome quase a metade dos recursos da União4.
Os dados falam por si. O gráfico a seguir demonstra para onde estão indo os recursos desde o Plano Real: o pagamento de juros e amortizações da Dívida Pública tem tido prioridade absoluta, em detrimento de todas as demais necessidades sociais.
Devido à impressionante diferença de tratamento entre a destinação de recursos aos pagamentos do serviço da dívida em relação aos demais gastos sociais, é flagrante o descolamento dos gastos com juros e amortizações enquanto os demais gastos crescem muito menos. Os gastos com pessoal mal acompanharam o crescimento vegetativo da folha de pagamentos decorrente de novas contratações e reposicionamento por promoções.
O Brasil é de fato uma potência. Recursos existem, e estão sobrando para o setor financeiro, canalizados por meio do “Sistema da Dívida”. Ao mesmo tempo, Direitos Humanos são aviltados, transformando o Brasil em um dos países mais injustos do mundo. As privatizações continuam a todo vapor5. Os servidores públicos têm sido continuamente prejudicados com a negativa de reajustes salariais, condições de trabalho aviltantes, direitos trabalhistas usurpados, previdência pública sendo privatizada e transformada em fundos de pensão justamente quando estes estão quebrando no mundo todo, enfim, os trabalhadores que possuem a responsabilidade de prestar um bom serviço ao público que paga elevados tributos em nosso país não podem se conformar com esse injusto quadro.
Dedico esse estudo a todos os trabalhadores que se organizam, mostram a cara, e vão à luta por seus direitos, buscando garantir o sustento de suas famílias e defender a dignidade do próprio serviço público que beneficia toda a sociedade. Merecem todo respeito aqueles que trilham o difícil caminho da luta cidadã, e não se deixam corromper pelo “Sistema”.
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1- Medida Provisória nº 2.074-73, Art. 1º: As estipulações de pagamento de obrigações pecuniárias exequíveis no território nacional deverão ser feitas em Real, pelo seu valor nominal.
Parágrafo único. São vedadas, sob pena de nulidade, quaisquer estipulações de:
(...)
II - reajuste ou correção monetária expressas em, ou vinculadas a unidade monetária de conta de qualquer natureza;
2- Lei Complementar 101/2000.
3- A dívida federal tem sido atualizada automaticamente, mensalmente, pelo IGP-M. A dívida dos estados (com a União) tem sido atualizada automaticamente, mensalmente pelo IGP-DI. Ambos são calculados pela FGV e suas variações no período foram muito superiores ao IPCA.
4- Em 2011 a dívida consumiu 45,05% dos recursos do Orçamento Geral da União. Gráfico em
www.divida-auditoriacidada.org.br
5- Ver “A Privataria do PT” em
www.divida-auditoriacidada.org.br
* texto completo com gráficos clique AQUI: